Olá, pessoal! Como alguns próximos já devem saber, estou passando esses dias meio adoentada (infecção respiratória, a princípio nada grave, mas que incomoda bastante). Sendo assim, não tive o mínimo de entusiasmo para baixar as fotos de receitas de minha câmera fotográfica, nem digitá-las...
Mas para não deixar meu Blog abandonado, vou postar mais uma crônica de Rubem Alves, uma delícia de ler!
"A se acreditar em entendidos em coisas de outros mundos, já devo ter sido cozinheiro em alguma vida passada. É que tenho um fascínio enorme pelas panelas, pelo fogo, pelos temperos e por toda a bruxaria que acontece nas cozinhas, para a produção das coisas que são boas para o corpo. Não é só uma questão de sobrevivência. Os cozinheiros dos meus sonhos não se parecem com especialistas em dietética.
Interessa-me mais o prazer que aparece no rosto curioso e sorridente de alguém que tira a tampa da panela, para ver o que está lá dentro. Minhas cozinhas, em minhas fantasias, nada têm a ver com estas de hoje, modernas, madeiras sem a memória dos cortes passados e das coisas que se derramaram, tudo movido a botão, forno de micro-ondas, adeus aos jogos eróticos preliminares de espiar, cheirar, beliscar, provar, perfurar... Tudo rápido, tudo prático, tudo funcional. Imaginei que quem assim trata a cozinha, no amor deve ser semelhante aos galos e galinhas, quanto mais depressa melhor, há coisas mais importantes a se fazer. Como aquele vendedor de pílulas contra a sede, da estória do "Pequeno Príncipe". Ir até o filtro é uma perda de tempo. Com a pílula elimina-se a perda inútil. “E que é que eu faço com o tempo que eu perco?" — perguntou o Principezinho.
"...Você faz o que quiser", respondeu o vendedor." — Que bom! Então, é isto o que vou fazer, ir bem devagarzinho, mãos nos bolsos, até a fonte, beber água..."
Quero voltar à cozinha lenta, erótica, lugar onde a química está mais próxima da vida e do prazer, cozinha velha, quem sabe com alguns picumãs pendurados no teto, testemunhos de que até mesmo as aranhas se sentem bem ali.
Nada melhor que o contraste. A sala de visitas, por exemplo. Lá no interior de Minas, faz tempo. Retrato silencioso oval do avô, na parede; samambaia no cachepô de madeira envernizada; porta-bibelôs; as cadeiras, encostos verticais, 90 graus, para que ninguém se acomodasse; capas brancas engomadas pra que nenhuma cabeça brilhantinosa se encostasse; os donos dizendo em silêncio "está mesmo na hora", enquanto a boca mente dizendo "ainda é cedo", na hora da partida, junto com as recomendações á tia Sinhá (porque toda família tinha de ter uma tia Sinhá). Aí a porta se fechava, e a vida recomeçava, na cozinha...
A porta da rua ficava aberta. Era só ir entrando. Se não encontrasse ninguém não tinha importância, porque em cima do fogão estava a cafeteira de folha, sempre quente, para quem quisesse. Tomava-se o café e ia-se embora, havendo recebido o reconforto daquela cozinha vazia e acolhedora. Eu diria que a cozinha é o útero da casa: lugar onde a vida cresce e o prazer acontece, quente... Tudo provoca o corpo e sentidos adormecidos acordam. São os cheiros de fumaça, da gordura queimada, do pão de queijo que cresce no forno, dos temperos que transubstanciam os gostos, profundos dentro do nariz e do cérebro, até o lugar onde mora a alma. Os gostos sem fim, nunca iguais, presentes na ponta da colher para a prova, enquanto 0 ouvido se deixa embalar pelo ruído crespo da fritura e os olhos aprendem a escultura dos gostos e dos odores nas cores que sugerem o prazer...
Cozinha: ali se aprende a vida. É como uma escola em que o corpo, obrigado a comer para sobreviver, acaba por descobrir que o prazer vem de contrabando. A pura utilidade alimentar, coisa boa para a saúde, pela magia da culinária, se torna arte, brinquedo, fruição, alegria. Cozinha, lugar dos risos...
Pensei então se não haveria algo que os professores pudessem aprender com os cozinheiros: que a cozinha fosse a antecâmara da sala de aulas, e que os professores tivessem sido antes, pelo menos nas fantasias e nos desejos, mestres-cucas, especialistas, nas pequenas coisas que fazem o corpo sorrir de antecipação. Isto. Uma Filosofia Culinária da Educação. Imaginei que os professores, acostumados a homens ilustres, sem cheiro de cebola na mão, haveriam de se ofender, pensando que isto não passa de uma gozação minha.
Logo me tranqüilizei, ouvindo a sabedoria de Ludwig Feuerbach, a quem até mesmo Marx prestou atenção: "O homem é aquilo que ele come". Abaixo Descartes. Idéias claras e distintas podem ser boas para o pensamento. Também bombas atômicas e as contas do FMI são boas para serem pensadas. Só que não podem ser amadas, não têm gosto e nem cheiro, e por isto mesmo a boca não as saboreia e não entram em nossa carne.
Imitar os que preparam as coisas boas e ensinam os sabores...
A primeira lição é que não há palavra que possa ensinar o gosto do feijão ou o cheiro do coentro. É preciso provar, cheirar, só um pouquinho, e ficar ali, atento, para que o corpo escute a fala silenciosa do gosto e do cheiro. Explicar o gosto, enunciar o cheiro; pra estas coisas a Ciência de nada vale; é preciso sapiência, ciência saborosa, para se caminhar na cozinha, este lugar de saber-sabor. Cozinheiro: bruxo, sedutor. "— Vamos, prove, veja como está bom..." Palavras que não transmitem saber, mas atentam para um sabor. O que importa está para além da palavra. É indizível. Como ele seria tolo se avaliasse seus alunos por meio de testes de múltipla escolha. É assim com a vida inteira, que não pode ser dita, mas apenas sugerida. Lembro-me do mestre Barthes, a quem amo sem ter conhecido, que compreendia que tudo começa nesta relação amorosa, ligeiramente erótica, entre mestre e aprendiz, e que só aí que se pode saborear, como numa refeição eucarística, os pratos que o mestre preparou com a sua própria carne...
A lição dois é que o prazer do gosto e do cheiro não convivem com a barriga cheia. O prazer cresce em meio às pequenas abstenções, às provas que só tocam a língua... É aí que o corpo vai se descobrindo como entidade maravilhosamente polimórfica na sua infindável capacidade para sentir prazeres não pensados. Já os estômagos estufados põem fim ao prazer, pedem os digestivos, o sono e a obesidade. Cozinheiros de tropa nada sabem sobre o prazer. A comida se produz às dezenas de quilos. Pouco importa que os corpos sorriam. Comida combustível. Que os corpos continuem a marchar. Melhor se fossem pílulas. Abolição da cozinha, abolição do prazer: pura utilidade, zero de fruição.
"— Estava boa a comida?"
"— Ótima. Comi um quilo e duzentas gramas..."
Equação desejável, pela redução do prazer à quantidade de gramas. Não deixa de ser uma Filosofia... Como aquela que desemboca nos cursinhos vestibulares e já se anuncia desde a primeira série do primeiro grau. Não se trata da erotização do corpo. Para a engorda tais sensibilidades são dispensáveis. Artifício na criação de gansos, para a obtenção de fígados maiores: funis goelas abaixo e por ali a comida sem gosto. Afinal, por que razão o prazer de um ganso seria importante? Seus donos sabem o que é melhor para eles... Vi nossos moços assim, funis goela abaixo, e depois vomitando e pensando o seu vômito. A isto se chama ver quantos pontos se fez no vestibular...
Entendem por que eu queria uma filosofia culinária de educação? É que temos tornado os criadores de ganso como modelos..."
Dri
ResponderExcluirFiquei curiosa de conhecer sua "cozinha" e passei pra retribuir sua visita (aproveitei e virei sua seguidora). Estou encantada com seu Blog. Parabéns.
Beijos
Sandra